Efeitos da cocaína, morfina e sua combinação na bioenergética mitocondrial do fígado
Abstract
Na sociedade actual o consumo de drogas de abuso atingiu os valores
mais altos de sempre. Este consumo acarreta enormes problemas, de ordem
social e de saúde, devido ao facto de provocarem toxicodependência e adição.
A cocaína (Coc) e a heroína (Her) são frequentemente usadas em
conjunto, numa combinação conhecida como speedball. Neste contexto, foi
recentemente descrita a ocorrência de interacções químicas entre a heroína,
ou o seu metabolito morfina (Mor), e a Coc, com formação de aductos Coc-Mor
na proporção de 1:1. Demonstrou-se anteriormente que esta combinação pode
induzir mecanismos específicos de toxicidade, causando disfunção mitocondrial
em neurónios corticais de embrião de rato. No entanto, pouco se sabe sobre a
hepatotoxicidade induzida pelo speedball, apesar da relevância do fígado no
metabolismo desses compostos.
Neste trabalho avaliaram-se os efeitos tóxicos da combinação de Coc e
Mor em mitocôndrias isoladas de fígado de rato incubadas com Coc, Mor, ou
combinação Mor+Coc (1:1), num intervalo de concentrações entre 0,2 e 1 mM.
Foram analisados os seguintes parâmetros da bioenergética
mitocondrial: parâmetros respiratórios (estados respiratórios, índice de controlo
respiratório e rácio ADP / O) usando um eléctrodo de O2 tipo Clark; potencial
mitocondrial e permeabilidade transitória mitocondrial induzida por Ca2+/Pi
(PTM), avaliados através das flutuações do potencial eléctrico transmembranar,
usando um eléctrodo de TPP+; acumulação mitocondrial de Ca2+, usando um
eléctrodo de Ca2+; e a actividade da ATPase, usando um eléctrodo de pH.
Avaliámos também parâmetros relacionados com o stresse oxidativo:
peroxidação lipídica, analisando o consumo de O2 e a produção de TBARS; e a
produção de peróxido de hidrogénio (H2O2) mitocondrial, usando um método
espectrofluorimétrico.
Os resultados obtidos nos parâmetros respiratórios mostram que os
efeitos da combinação Mor+Coc são semelhantes aos da Coc sozinha:
promovem o aumento da permeabilidade passiva da membrana interna a
protões; inibem a cadeia respiratória mitocondrial e diminuem o potencial
eléctrico transmembranar gerado pela respiração. Nenhuma das drogas,isoladamente ou em combinação, afecta o PTM induzido por cálcio.
Relativamente aos parâmetros de stresse oxidativo, os resultados obtidos
indicam que os efeitos da combinação Mor+Coc são semelhantes ao da Mor
sozinha, apresentando ambas actividade antioxidante, ao protegerem da
peroxidação lipídica membranar e reduzirem a formação de H2O2 pelas
mitocôndrias.
Em conclusão, o presente trabalho sugere que a exposição sequencial
das mitocôndrias de fígado a Mor e Coc não altera os efeitos observados na
presença de cada uma das drogas isoladamente, ou seja, não altera o efeito da
Coc na bioenergética mitocondrial nem o efeito antioxidante da Mor.
Estes resultados poderão ser importantes a nível forense para explicar
casos de morte por co-consumo de Her e Coc. Poderão ajudar a entender, por
exemplo, se a morte por overdose ocorre mais rapidamente no co-consumo de
Her e Coc do que se fosse consumida a mesma dose de apenas uma dessas
drogas.